O planejamento urbano vai muito além do ambiente urbano em si. Todos os dias, nossas escolhas, o modo como nos deslocamos, o quanto gastamos para isso, as oportunidades a que temos acesso, as opções que fazemos e as que deixamos de fazer – tudo é moldado pelo planejamento urbano. Os profissionais da área, portanto, têm influência direta sobre a vida nas cidades. Mas como é, hoje, a formação acadêmica dos futuros planejadores e planejadoras? O que é essencial para atuar na área?
No planejamento, é fundamental pensar além de um projeto e considerar os seus impactos na cidade. Um projeto ou uma ação isolados podem ser considerados positivos, enquanto na prática geram distorções ou reflexos negativos. “É essencial ter sempre em mente como as ações de planejamento serão materializadas na cidade – como serão desenhadas e quais impactos terão nas pessoas e no tecido urbano”, avalia Gabriela Tenorio, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília.
Ao refletir sobre a formação na área do planejamento urbano, cabe fazer a distinção entre planejamento urbano e desenho urbano. O primeiro, explica Gabriela, lida com uma escala maior, abrangendo tópicos como zoneamento e mobilidade, enquanto o segundo se ocupa da chamada “escala intraurbana”. É onde entra, por exemplo, o desenho das ruas. E é no nível da rua que hoje acontecem algumas das principais mudanças na maneira como as cidades são projetadas.
Ruas Completas e o planejamento na escala da rua
As necessidades das pessoas mudam, as cidades mudam, a mobilidade muda. A academia deve acompanhar e absorver essas transformações para que, na outra ponta desse processo, as cidades sejam planejadas considerando novas necessidades e a própria evolução do ambiente urbano.
O desejo das pessoas em termos de mobilidade está se adaptando às novas oportunidades de escolha, e nesse cenário surge o conceito de Ruas Completas, que prevê que as ruas – e, consequentemente, as próprias cidades – sejam projetadas para acomodar todos os tipos de usuário com conforto e segurança.
Gradativamente, as universidades começam perceber a importância desse e de outros conceitos na formação acadêmica dos profissionais de planejamento urbano. Em Juiz de Fora, por exemplo, a partir de uma parceria entre o WRI Brasil, a Frente Nacional de Prefeitos (FNP) e a prefeitura do município, a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) criou em 2017 a disciplina Projeto e Mobilidade Urbana, na qual os alunos podem exercitar o planejamento na escala da rua.
Fernando Lima, coordenador da disciplina e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFJF, considera que há uma lacuna no sentido de pensar o planejamento na escala da rua, mas esse é justamente um ponto que a abordagem das Ruas Completas ajuda a suprir: “Para entender medicina, são necessários conhecimentos de química e biologia, por exemplo. Da mesma forma, no planejamento urbano, é preciso compreender as escalas menores. Saber que as mudanças feitas em uma rua terão repercussão na escala do bairro e até na escala da cidade. E acho que esse é um ponto que o trabalho com as Ruas Completas ajuda a reforçar”.
Recentemente, Juiz de Fora testou o projeto de sua Rua Completa por meio de uma intervenção de urbanismo tático junto a uma exposição de projetos dos alunos da UFJF. Com essa nova abordagem na universidade, no futuro profissionais ainda mais capacitados poderão contribuir para tornar as ruas mais acessíveis e seguras.
Da cidade para a sala de aula, da sala de aula para a cidade
Uma visão ampla e o diálogo com outras áreas são desafios no ensino, mas que podem potencializar o planejamento urbano. A engenharia de transportes e o planejamento da mobilidade, por exemplo, estão diretamente relacionados ao planejamento das cidades. Estabelecer essa conexão, estimulando o conhecimento multidisciplinar, pode enriquecer o ensino, beneficiar os alunos e, no futuro, as próprias cidades.
“É importante ter uma visão holística e saber dialogar com os diferentes conhecimentos envolvidos nos processos de planejamento e gestão”, considera Diego Lopes Dutra, mestrando em Engenharia de Produção e Transportes na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Tenho a percepção de que, no contexto de cidades, a engenharia ainda precisa incorporar o pensamento mais amplo e multidisciplinar inerente ao planejamento urbano. Acredito que uma maior aproximação entre o meio acadêmico da engenharia e o do urbanismo contribuiria muito para a produção de conhecimento e para gerar ideias e soluções para as nossas cidades”.
Trata-se de uma troca constante. As mudanças nas cidades precisam chegar ao meio acadêmico e o aprendizado das salas de aula deve ser capaz de produzir impactos positivos no ambiente urbano. Um processo que precisa ser contínuo. “Aprendemos novas dinâmicas e paradigmas, estudamos casos ao redor do mundo, refletimos, pesquisamos e levamos para a sala de aula. A questão é isso chegar nas práticas arraigadas fora da universidade. Felizmente, aos poucos os egressos começam a ocupar esses espaços, e vão transformando práticas, mudando mentalidades e aprimorando nossas cidades”, afirma Gabriela Tenorio.
Rede de Professores Universitários pelas Ruas Completas
A experiência com o projeto Ruas Completas permitiu identificar que, para garantir a mudança na realidade a longo prazo, é preciso ir além do trabalho com as administrações municipais. Disseminar o conceito de Ruas Completas no meio acadêmico e integrá-lo na formação dos futuros profissionais do planejamento urbano também é fundamental.
Nesse contexto, nasce a Rede de Professores Universitários pelas Ruas Completas, criada pelo WRI Brasil com apoio da FNP. A Rede tem o objetivo de engajar professores de todas as regiões do país para a troca de experiências, referências e boas práticas sobre Ruas Completas. “Queremos identificar os desafios e as oportunidades para integrar o conceito de Ruas Completas na formação dos futuros profissionais do planejamento urbano, para que sejam capazes de planejar e desenvolver projetos que ajudem a tornar nossas cidades mais seguras, saudáveis e democráticas”, comenta Paula Manoela dos Santos, gerente de Mobilidade Ativa do WRI Brasil.
Atualmente, 65 professores de universidades públicas e privadas de todas as regiões do país já fazem parte do grupo. A primeira reunião presencial aconteceu na última quarta-feira (8), com um grupo de professores que representaram as cinco regiões do país. No encontro, os participantes falaram sobre suas experiências, expectativas com a Rede, os desafios de integrar o conceito de Ruas Completas na grade curricular das universidades e os caminhos possíveis para isso. Ao longo do ano, o assunto será debatido em uma série de seminários online organizados pelos professores da Rede e pelo WRI Brasil.